
Alguém perguntou:
“Porque houve a necessidade de um sacrifício redentor? Por que Deus simplesmente não perdoou a humanidade por um simples ato de vontade?”
Não há necessidade de que Deus salve a humanidade desse ou daquele jeito. Deus poderia, sim, salvar a humanidade com uma só palavra. De fato, o perdão, na sua essência, é um ato gratuito, que emana das riquezas da misericórdia divina. Como Jesus disse tantas vezes a tantas pessoas: “teus pecados estão perdoados”.
A questão não é se Deus poderia fazer alguma coisa dessa ou daquela maneira, mas sim qual problema Deus tencionou resolver. Como ensinou Santo Atanásio, se fosse o problema do perdão apenas, bastaria o arrependimento, sem a Encarnação — Deus sabe perdoar do mesmo jeito que nos manda perdoar. O perdão divino implica algo maior: reconciliação com Deus, e para isso precisamos ser curados do pecado.
Então a pergunta assume a seguinte forma: já que Deus poderia salvar a humanidade de infinitas maneiras, porque a Sabedoria Eterna escolheu que acontecesse como aconteceu, tão dura e dolorosamente? A categoria correta não é necessidade, mas conveniência, adequação, propriedade, proporcionalidade, “fittingness”.
Certamente Deus quis nos salvar de uma maneira que, simultaneamente, exaltasse a Cristo, revelasse mais plenamente a natureza divina e fosse a mais adequada à nossa natureza e necessidade.
Desse modo, embora certamente esteja dentro da Onipotência nos salvar de infinitas maneiras — quem diz que Deus só poderia salvar de um jeito ofende essa Onipotência —, não somos capazes de imaginar nenhuma maneira que seja tão gloriosa como a Redenção contada nos evangelhos.
Imagine, por um instante, que Deus nos tivesse salvado (transformado) por um ato de poder. Nós receberíamos passivamente a salvação, mas seríamos incapazes de imitá-lo. Mas nos salvando, não por um ato de poder, mas pelo sofrimento da dor — isto é, pela obediência até a morte —, ele nos deu um caminho a imitar: a cruz. Como ensinam os Pais, Deus não quis nos salvar pelo poder, mas pela justiça (virtude).
Então Deus providenciou um caminho melhor, no qual:
1. Nós participemos da dividade comendo a carne e bebendo o sangue de Cristo, imitemos sua vida e morte obedientes, e nos enchamos de devoção e autoentrega ao contemplarmos a Paixão.
2. Cristo seja premiado pela obediência, tornando-se Senhor de vivos e mortos, tendo um nome acima de todo o nome, assentando-se acima de principados e potestades — recebendo essa posição (“entrasse na glória”) por merecimento (“vindicação”), tendo superado toda tentação, vergonha, maldição e inculpação a que estamos sujeitos. Cristo, o supremamente humilhado, é supremamente exaltado.
3. Os demônios sejam vencidos, não por poder bruto, mas por obediência dolorosa.
4. O próprio Deus participe do sofrimento do mundo, sem ficar assistindo distante, no trono da glória, todo o drama que ele criou.
Quanto à noção de sacrifício, é adequado, conveniente e apropriado que a reconciliação de um ofensor de alguém envolva sempre a auto-humilhação da pessoa que pede perdão (assim como de qualquer representante seu). Parte do processo de intercessão de Cristo (que continua acontecendo hoje) envolve isso. Ele não o faz porque esteja tentando convencer um “Pai” rancoroso que tenha dificuldade em perdoar, mas apenas para que nós tenhamos dimensão do valor imenso do que nos é dado.
Em outras palavras: podendo escolher uma rota mais fácil, Deus escolheu o caminho mais difícil e quer que façamos o mesmo. Com isso, nós dá maior motivo para amá-lo.
Muito mais coisa se pode dizer a esse respeito, mas aqui está o começo.
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